O presidente da Assemae, Aparecido Hojaij, lembra que a ação jurídica marca os 36 anos da entidade, completados em outubro. "A associação tem solidez e representatividade indiscutíveis conquistadas durante todos esses anos. Nós temos a obrigação de acionar a instância superior do Judiciário brasileiro para que os prestadores municipais de saneamento possam continuar trabalhando pela qualidade de vida da população, por meio do saneamento. É nosso dever resguardar o direito fundamental ao saneamento", afirma.
Segundo Hojaij, a Lei 14.026/20 representa a completa imposição da União sobre a autonomia dos municípios, além de transformar o saneamento básico em um balcão de negócios, excluindo a população pobre e marginalizada. "É o momento de unir forças para derrubar essa lei autoritária. A Assemae, que sempre esteve à frente nesta luta, não se afastará de seus princípios para defender o saneamento público municipal", acrescenta.
O secretário-executivo da Assemae e advogado, Francisco dos Santos Lopes, lembra que a ADI está focada na preservação da titularidade municipal, conforme prevista na Constituição. "Todos queremos saneamento. Mas as mudanças não podem ser feitas contrariando e ferindo a Carta Magna brasileira", reitera. Conforme recorda o secretário, as reivindicações da Assemae não foram atendidas durante o processo de revisão do Marco Legal do Saneamento, embora a entidade tenha contribuído em diversas audiências públicas, reuniões e também na elaboração de projetos de lei.
A ADI é resultado da parceria do trabalho desenvolvido pela Assemae juntamente com o escritório jurídico Gico, Hadmann & Dutra Advogados, sediado em Brasília. Conforme esclarece o advogado responsável pela petição, Ivo Teixeira Gico Jr., a ADI da Assemae tem como objetivo solicitar a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º, 3º, 5º, 7º, 9º, 11, 13 e 15, entre outros, por arrastamento, da Lei 14.026/2020.
De acordo com o advogado, o pedido da Assemae se justifica porque a nova legislação desrespeita diretamente a Constituição Federal brasileira, com destaque para a extrapolação de competência da União, esvaziamento de competência municipal, abuso de poder econômico, intervenção federal sobre a autonomia municipal e violação ao pacto federativo.
Segundo Ivo Gico Jr., um dos principais problemas da Lei 14.026/20 é a imposição de uma única forma para delegar o serviço de saneamento. "Agora, só pode delegar serviço de saneamento básico por concessão, o que obviamente extrapola a competência da União, proibindo a gestão compartilhada dos serviços de saneamento por consórcio ou convênio, mediante autorização, o que na prática significa que a lei rasgou o artigo 241 da Constituição Federal. A lei, de forma equivocada, impôs um modelo único de privatização: ou o município presta sozinho o serviço ou, se ele decidir cooperar com qualquer município, vai ter que conceder o serviço. Essa imposição é claramente inconstitucional e, por isso, estamos confiantes com o êxito da ação".
Com 92 páginas, a ação da Assemae está organizada em três eixos de argumentos. O primeiro é a apresentação institucional da entidade, na qual se destaca a sua legitimidade para oferecer a propositura de ADIs. Em seguida, o documento expõe o arcabouço argumentativo que comprova as inconstitucionalidades da Lei 14.026/20, com destaque para a imposição da União sobre o poder de decisão do município. Por fim, a ação alerta que as alterações decorrentes da nova lei interferem os contratos de prestação de serviços de saneamento já em andamento, violando o que é conhecido no Direito como ato jurídico perfeito.
Principais pontos da ADI 6583
Para fundamentar a declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.026/20, a ADI 6583 está baseada em artigos da Constituição Federal brasileira e na jurisprudência do STF sobre assuntos relacionados ao tema do saneamento. Sendo assim, a petição demonstra que:
1) A competência para regular, organizar e prestar serviço de interesse local é do município (artigo 23, IX c/c artigo 30, incisos I e V/CF);
2) O saneamento básico é serviço de interesse local (ADI nº 2.340/SC);
3) A "essência da autonomia municipal contém primordialmente auto-administração, que implica capacidade de decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica" (ADI nº 1.842/RJ);
4) A autonomia municipal para serviços de interesse local não pode ser afastada ou eliminada, seja quando se criam regiões metropolitanas — hipótese na qual a autonomia municipal deve ser exercida pelo voto no conselho deliberativo — , seja quando são utilizados recursos dos demais entes para a construção e manutenção dos referidos serviços (ADI nº 1.842/RJ c/c ADI nº 2.077/BA);
5) A essência do conteúdo material da competência regulatória municipal envolve quatro variáveis básicas: a) entrada no mercado; b) qualidade; c) preço. e d) informação (artigo 23, IX c/c artigo 30, incisos I e V/CF);
6) Os Estados só podem "instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões" quando o interesse local se transformar em interesse comum dos "agrupamentos de municípios limítrofes" (§3º, artigo 25/CF);
7) O §3º do artigo 25/CF não constitui uma autorização para o Estado encampar o serviço municipal, mas apenas para criar um mecanismo de coordenação para que os entes envolvidos possam coordenar suas ações, sem jamais subjugar o município (ADI nº 1.842/RJ, ADI nº 2.340/SC e ADI nº 2.077/BA);
8) O Estado não possui competência constitucional para criar áreas de prestação regionalizada de saneamento básico quando os municípios envolvidos já estabeleceram gestão associada;
9) O Estado não possui competência constitucional para criar áreas de prestação regionalizada de saneamento básico na ausência de interesse comum e a União não possui esta competência mesmo na presença do interesse comum;
10) O artigo 175/CF permite ao município delegar qualquer serviço público, mesmo essencial, por meio de concessão ou permissão;
11) O artigo 241/CF permite ao município realizar a gestão associada de qualquer serviço público por meio de consórcio público ou convênio de cooperação com outros entes federados;
12) A concessão ou a permissão, com exclusividade, requerem a realização de licitação (artigo 175/CF), enquanto a gestão compartilhada por consórcio ou convênio de cooperação requer apenas autorização (artigo 241); no entanto,
13) A Lei nº 14.026/20 impõe unilateralmente aos municípios a decisão da União, por meio da Agência Nacional de Água (ANA), sobre todas as variáveis regulatórias relevantes na prestação do serviço de saneamento básico, esvaziando por completo a competência municipal (artigo 23, IX, c/c artigo 30, incisos I e V/CF);
14) A Lei nº 14.026/20 impõe que a única forma de delegar o serviço de saneamento básico seja por meio de concessão (artigo 175/CF), extrapolando a competência da União ao proibir a gestão compartilhada do serviço de saneamento por consórcio ou convênio, mediante autorização, esvaziando o artigo 241/CF; e
15) A Lei nº 14.026/20 viola direitos fundamentais ao prejudicar contratos em vigor e, portanto, atos jurídicos perfeitos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico